“Os analistas entendem que a meritocracia é o melhor caminho para a efetividade do serviço público. Jamais se verá um de nós defender, por exemplo, que se ascenda à Magistratura por tempo de serviço ou por ‘evolução de nossas atividades’.”
ROMEU MEIRELLES
Analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região – São Paulo
29/04/2019
Está definitivamente instaurada no Poder Judiciário a controvérsia a respeito da conveniência da alteração do requisito de ingresso de servidores para o nível superior, que eliminaria completamente a possibilidade de participação em concursos de ingresso aos 90% de brasileiros que não conseguiram essa capacitação [1][2].
Sob a singela alcunha de “NS para os técnicos” se esconde uma profunda discussão filosófica acerca da visão de Poder Judiciário que se entende mais efetiva para a sociedade.
SUBSISTEM OU NÃO TAREFAS DE NÍVEL MÉDIO
De um lado, os Analistas entendemos que há muitas atividades que claramente exigem apenas o nível médio para que sejam realizadas. Por essa concepção, exigir que pessoas sobrequalificadas as realizem é contra o interesse público, pois faz com que a Administração Pública gaste mais que o necessário.
De outro, alguns Técnicos acreditam que, com a implementação do Processo Judicial Eletrônico, não há mais tarefas de nível médio no âmbito do Poder Judiciário. Para eles, todas as atividades de nível médio teriam “evoluído para nível superior” – sem se transformar em tarefas diferentes – e por isso não deveriam mais existir cargos de nível médio.
Para sua tese, é importante a hipótese da “evolução” porque, se tais tarefas tivessem deixado de existir, a decorrência lógica seria a extinção do cargo que as realiza, o que eles não consideram conveniente explicitar.
Está claro que a tese é muito contraditória. Como se daria essa alegada “evolução sem transformação”? Para afastar a aridez de discussões teóricas infindáveis e sem lastro na realidade, vamos a um exemplo:
É incontestável que, antes do PJe, a expedição de mandados e ofícios era uma atividade que requeria apenas nível médio: transcrever textos; valores; endereços; juntar documentos em anexo; clicar em algumas opções; imprimir; e entregar aos Oficiais de Justiça ou aos Correios.
Com o advento do PJe, para a expedição de mandados e ofícios, ainda se transcrevem textos; valores; em alguns casos, endereços; ainda se juntam documentos, agora digitais; ainda se clicam em algumas opções; ainda se imprimem, em alguns casos, para remessa aos Correios. Onde está a evolução da tarefa? Onde está a necessidade de curso superior para sua realização?
Obviamente, não existe essa “evolução”. Ou a tarefa de nível médio subsistiu ou foi eliminada.
CONFUSÃO ENTRE EVOLUÇÃO PESSOAL E DA CARREIRA
Não se discute que as pessoas se qualificam e evoluem. Claramente, com o tempo de serviço, a experiência aumenta, as pessoas fazem cursos, aprendem no contato com os colegas e magistrados e na especialização. Todos somos dotados de inteligência e capazes de nos tornarmos melhores quando diante da oportunidade. Pensar diferente seria elitismo preconceituoso.
Por isso não se pode negar que, com o passar do tempo, os Técnicos evoluem e se qualificam para vôos mais altos. Tanto que, com muita honra, vários se tornam Professores Universitários, Analistas ou Juízes. Mas sua evolução pessoal – digna de todo mérito e aplauso – não se confunde com a evolução das tarefas para para as quais foram titularizados no concurso público inicial. Confundir a trajetória pessoal com a da carreira é como tentar passar um trem por baixo da porta: uma total impossibilidade.
Acredito que muitos incautos compram essa tese porque a alternativa é mordaz: submeter-se a um novo processo seletivo e competir com milhares de candidatos pelo direito a um novo cargo, mais adequado à sua potencialidade. E ter que conviver com a frustração de eventualmente não conseguir passar pelo crivo da competição, senão ao custo de muita renúncia e dedicação.
Para evoluir de carreira, não basta provar competência. É preciso provar merecimento.
MERITOCRACIA x PATRIMONIALISMO
Nós, os analistas, entendemos que a meritocracia é o melhor caminho para a efetividade do serviço público. Jamais se verá um de nós defender por exemplo que se ascenda à Magistratura por tempo de serviço ou por “evolução de nossas atividades”.
A ideia de merecimento mudou muito na história. No Império Romano, se achava que o merecimento consistia em Clientelismo onde a troca de favores habilitava ao exercício da função pública. Posteriormente, com sua queda e, particularmente no Império Português, o mérito para a conquista de posições no aparelho do Estado evoluiu para uma de suas evoluções: o Patrimonialismo, onde o titular do poder confundia o público com o privado, usando o Estado no seu próprio interesse. Por aqui, só no Século XIX, com a Constituição de 1824 (Art.179 XIV), é que se começou a instituir a ideia de Meritocracia e, em decorrência, o Concurso Público.
Embora haja ainda hoje críticas sólidas ao sistema meritocrático, não há dúvida que ele é superior ao Patrimonialismo, por permitir que a oportunidade de integrar o Estado seja estendida a todos os cidadãos.
ELITIZAÇÃO E EFICIÊNCIA
Pessoalmente, não consigo aceitar essa ideia esdrúxula de que a utilização de gente sobrequalificada pode ser boa para o serviço público.
É obviamente mais caro.
Alguns argumentam que a combinação de tarefas complexas e tarefas simples, realizadas pela mesma pessoa, ao mesmo tempo, é mais eficiente que a separação de tarefas por capacitação. Isso contraria toda a história da evolução da humanidade, que, em síntese, foi baseada no aumento da eficiência pela especialização. Assim, a redução da especificidade das tarefas não pode conduzir ao aumento da eficiência. É uma realidade empírica.
Afastar 90% da população também afasta a visão de mundo dessas pessoas, reduzindo a sensibilidade do Estado às necessidades da população pobre, elitizando a administração e promovendo a desigualdade social, mesmo que sem a declarada intenção de fazê-lo.
Ora, excluir os candidatos de nível médio significa impedir que o serviço público seja sensível à realidade do preconceito, da falta de oportunidades, de segurança, de saúde, etc., que acometem com maior intensidade quem teve menos oportunidades na vida. Como isso pode ser bom?
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