O concurso para ingresso no serviço público é um dos grandes avanços da Constituição-cidadã. Defendê-lo da sanha de políticos e burocratas sem escrúpulos é dever de todo o cidadão já farto dos precedentes absurdos
Jornal do Brasil
28/10/2022

Por ALEXANDRE MELLO
Presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais do Estado do Rio de Janeiro (Sinfrerj)

“Pense em um absurdo, na Bahia tem precedentes”. O que disse há 60 anos em relação ao seu Estado natal o então governador baiano Octávio Mangabeira poderia muito bem ser aplicado à cidade do Rio de Janeiro. Pelo menos, no que diz respeito a um absurdo específico: o famigerado projeto de “Reforma Administrativa” defendido pelo atual governo federal.

Afinal, qual cidadão carioca não traz ainda viva na memória a triste lembrança dos “guardiões” que um certo ex-prefeito lançou à condição de servidores públicos? Em vez de se ocuparem de ajudar a resolver os problemas da população que lhe pagava os salários, concentravam-se em hostilizar jornalistas que mostrassem as péssimas condições dos hospitais municipais durante a pandemia.

Quis o destino que esse escândalo viesse à tona bem na mesma semana em que o Palácio do Planalto apresentava ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, prevendo uma série de ataques a garantias históricas do funcionalismo, em especial, a da estabilidade.

Entidades representativas dos servidores públicos não deixaram de notar a relação existente entre estes dois fatos. Como foi pontuado à época pelo presidente da Federação Nacional dos Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), Charles Alcântara, os caricatos personagens expostos no caso da capital fluminense tinham todos algo em comum: eram comissionados, ou seja, poderiam ser mandados embora a qualquer momento, o que os tornava reféns dos anseios do político no comando da máquina pública na ocasião.

Na visão de Charles, ao fazer um movimento no sentido de generalizar este tipo de vínculo precário, o governo federal pode abrir uma avenida para que desvios assim se tornem cada vez mais comuns: “Sai de cena o servidor público para dar lugar ao “guardião do Bolsonaro”, “guardião do governador A”, “guardião do prefeito B”…”.

Preocupação semelhante tem sido expressa também por órgãos como o Sindicato Nacional dos Auditores e Técnicos Federais de Finanças e Controle (UNACON Sindical) e o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (FONACATE). Para Bráulio Cerqueira e Rudinei Marques, dirigentes destas instituições, a proposta é um “estímulo à corrupção no Brasil”.

Os dois destacam que, diferente do que vem sendo propagandeado, a medida não afetará apenas os futuros servidores, mas também os atuais. Caso venha a prosperar, será criada a figura do cargo de “liderança e assessoramento”, o que permitirá que uma série de posições de direção dentro das repartições, hoje ocupadas por quadros técnicos, passem a poder ser preenchidas “por pessoas estranhas ao serviço público, indicadas sem nenhum critério”.

Não fosse isso suficiente, haverá ainda a previsão de que cada órgão possa instituir seus próprios procedimentos para contratação de bens e serviços (presumivelmente, sob a orientação de suas novas “lideranças”, escolhidas sabe-se lá por quais motivos). Cenário que contribuirá para uma caótica proliferação de submundos jurídicos, orçamentários e financeiros dentro do próprio Estado.

É por essas razões que a Nota Técnica nº 69/2021 da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado concluiu pelo impacto fiscal adverso da PEC nº 32/2020, decorrência direta do aumento de fraudes que a iniciativa irá propiciar. Nada disso, entretanto, parece ser obstáculo para o operoso Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Segundo o parlamentar, “Este ano, ainda dá para debater a Reforma Administrativa”. Na realidade distópica que vivemos, seria perfeitamente normal promover um debate virtual sobre essa tema tão relevante, a toque de caixa, entre um jogo e outro da Copa do Mundo, por que não?

O concurso para ingresso no serviço público é um dos grandes avanços republicanos da Constituição cidadã. Defendê-lo da sanha de políticos e burocratas sem escrúpulos é dever de todo o cidadão já farto dos precedentes absurdos.