“Nível superior para cargos de 2º grau no PJU e MPU vai ampliar o fosso das desigualdades no Brasil”

Sheila Macário: alterações ferem competência privativa do STF

A afirmação é de Sheila Macário, técnica do TJSE que luta desde 2022, no STF, OAB e PGR, contra “emendas da exclusão” dos cidadãos de nível médio; ela se indignou com o Congresso Nacional por derrubar veto presidencial à medida desse tipo pela segunda vez em um ano.

Uma porta para alargar as desigualdades sociais no País. Assim, a sergipana Sheila Christiane Macário Santos, 47 anos, técnica judiciária (TJ) do TJSE, classifica emendas parlamentares que, em um ano, elevaram a escolaridade do pessoal de cargos de nível médio do Poder Judiciário e Ministério Público da União (PJU e MPU).

Emendas aprovadas pelo Congresso Nacional, para assegurar escolaridade superior aos cargos de 2º grau, sem concurso público, vão ampliar o fosso das desigualdades sociais no Brasil”, afirmou a TJ. Ela foi aprovada em 2005 para o TJSE na 63ª colocação entre milhares do total de 14.279 candidatos, incluindo para os cargos de Analistas, e que há anos se preparava para concursos públicos ao mesmo cargo no PJU.

Em entrevista ao site da ANAJUS, a profissional contou que se indignou novamente com o Congresso Nacional, desta vez por conta da derrubada do Veto 10, nessa quinta-feira (14). Assinada pelo presidente Lula, a medida havia anulado a elevação da escolaridade dos técnicos do MPU.

Emendas da exclusão

No final de 2022, Sheila já havia se revoltado com a derrubada de veto semelhante, assinado pelo ex-presidente Bolsonaro, contra a emenda que alterou projeto de lei do TJDFT para elevar a escolaridade dos futuros técnicos do PJU, beneficiando até os atuais, que passaram em concursos para cargos de nível médio.

Ambas emendas ferem a competência privativa do STF de propor leis para seus servidores. Mais grave, excluem boa parcela da população sem condições de fazer curso superior, como eu. Venho de lar humilde — pai, caminhoneiro; mãe, dona de casa; quatro filhos; e eu, trabalhando desde os 16 anos, no papel de arrimo de família”, detalhou.

Por isso, após superar restrições econômicas e problemas de saúde, Sheila retomou este ano curso superior particular em Serviços Jurídicos e Notariais, algo inacessível financeiramente, na avaliação dela, se não tivesse ingressado no TJSE com o diploma de nível médio.

A profissional também critica que as entidades idealizadoras das emendas estejam agora defendendo aproximação salarial dos técnicos com os Analistas, carreira histórica para cargos de nível superior, diferentemente da ideia inicial de que não haveria impacto orçamentário. “Quem pagará a conta será toda a sociedade, principalmente os que foram excluídos de fazer concurso público para cargos de nível médio”, pontuou.

Dignidade e convicção

Apesar das adversidades, nem antes nem agora, Sheila jogou a toalha. No início de 2023, além de pedir a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), ela também ingressou com pedidos no Supremo Tribunal Federal (STF) e na Procuradoria-Geral da República (PGR). No STF, foi considerada ilegítima para contestar leis federais. Na PGR, aguarda decisão desde janeiro.

Para a autora da proposição, que entrou segunda-feira passada (11) na pauta do Conselho Pleno da OAB, o mais revoltante é que propostas idênticas possam prosperar nos PJs e nos MPs estaduais, contribuindo para tensionar ainda mais o fosso das desigualdades no país. A proposição deverá ser apreciada em fevereiro após a retomada dos trabalhos do colegiado.

Mesmo assim, ela pretende seguir em frente em defesa de suas convicções, levando o orgulho de ter entrado no Tribunal de Justiça de Sergipe, especialmente por ser um dos melhores do País com premiações concedidas pelo Conselho Nacional de Justiça.

Sou brasileira e não desisto nunca“, destacou, prometendo continuar a luta pelo acesso de cidadãos e cidadãs de nível médio ao funcionalismo público do PJ e MP da União e dos Estados. “Meus pais (Geraldo e Josefina), ambos já falecidos, são meus heróis: me ensinaram a viver com dignidade e lutar pelo que a gente acredita que é o certo e justo”.

 

ANAJUS: A senhora é Técnica Judiciária desde quando?

SHEILA MACÁRIO:  Sou Técnica Judiciária do TJSE desde 2005, quando fui aprovada em concurso público para cargos de nível médio. A partir daí, venho estudando para passar em um concurso de esfera federal, na área da Justiça. Só que aí teve essa mudança, em 15 de dezembro de 2022, com a alteração da escolaridade para o ingresso, via concurso público, à carreira dos cargos de técnico de 2º grau no Poder Judiciário da União (PJU); Eu sou contra porque vejo como um meio de excluir os menos favorecidos de ingressar no PJU.

ANAJUS: Desde quando a senhora passou a se interessar pela área jurídica?
SM:
Desde os 16 anos, quando passei na seleção para estágio e fui lotada  na área jurídica do Banco do Nordeste, no período de 1993 a 1995. Nos últimos anos, fiz concursos para os tribunais do Trabalho do Espírito Santo (TRT-ES) e do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) e estava me preparando para outros tribunais federais e para o concurso unificado da Justiça Federal, quando houve a mudança da escolaridade para técnicos. Senti um forte abalo emocional. Isso faz mal até para a saúde mental de todos que estavam se preparando para os concursos dos cargos de nível médio.

 

ANAJUS: Depois de ser aprovada, para nível médio, em 2005, no TJSE, a senhora fez algum concurso para nível superior lá mesmo para a carreira de Analista Judiciário?
SM:
Eu fiz o concurso do TJDFT, para nível médio, mas não passei. Fiz também o do TRT-ES, também não passei.  Aí houve essa mudança na lei e ocorreu a alteração de nível de escolaridade para cargo de técnico judiciário do PJU no Congresso Nacional por meio de emenda parlamentar que fere a competência constitucional privativa do STF de propor ao Legislativo projetos lei relacionados a seus próprios quadros de servidores.

 

ANAJUS: O que a levou a buscar concursos para o mesmo cargo nos tribunais do PJU?
SM:  Gosto muito do meu trabalho no TJSE, um dos melhores tribunais do País. É sempre premiado pelo CNJ, inclusive neste ano recebeu selo de Ouro, atingindo 81,5% nos critérios de avaliação do CNJ, e já ganhou o selo de Diamante em outros anos.

 

ANAJUS: A senhora é formada em Direito?

SM: Não, ainda não. Parei o curso de Direito por vários problemas pessoais, problemas de saúde e falecimento dos meus pais. Tive que cuidar de minha família e passei por doenças. Ainda assim, agora estou fazendo uma graduação na Estácio e vou terminar no próximo ano. E, se Deus quiser, assim concluirei o ensino superior completo. É um curso que tem a ver com Direito. É de Serviços Jurídicos e Notariais.

 

ANAJUS: Antes da alteração, a senhora pretendia fazer outros concursos para assumir como técnico?

SM: Sim. Eu venho estudando para concursos e quero fazer o do TSE Unificado, que está com previsão de ser realizado em 2024.

 

ANAJUS: Vai fazer o TSE Unificado, mas a senhora não tem curso superior ainda, como vai fazer?

SM: Eu vou fazer o concurso. Como eu falei, eu me formo no próximo ano. Está para sair o edital do TSE. Acho que dá tempo até eu me formar.

 

ANAJUS: Depois de passar essas dificuldades, esse seria o momento para senhora entrar em tribunais federais, em busca de uma melhor remuneração?
SM: Exatamente. A gente busca o melhor para nossa vida e para os nossos familiares, alinhando o crescimento educacional e remuneratório, tendo uma qualidade de vida, uma dignidade humana.

 

ANAJUS: Qual é sua avaliação na alteração da escolaridade para nível médio?
SM: Essa alteração na lei findou me atingindo diretamente e a muitos outros concurseiros que só têm nível médio, pois vai deixar muitas pessoas sem poder fazer concurso de técnico judiciário por não terem ainda o nível de escolaridade superior, aumentando assim as desigualdades sociais no nosso Brasil. É uma lei excludente.

Emendas aprovadas pelo Congresso Nacional, para assegurar escolaridade superior aos cargos de 2º grau, sem concurso público, vão ampliar o fosso das desigualdades sociais no Brasil.

 

ANAJUS: A senhora conhece outras pessoas do TJSE que tenham sofrido essa mesma decepção por causa da mudança da legislação?

SM: Conheço, mas preferiram não ingressar com nenhuma medida na Justiça ou procurar os órgãos competentes.

 

ANAJUS:  As pessoas se acomodaram, é isso?

SM: Também tem essa questão da lei em vigor, aí não quiseram entrar na Justiça.

 

ANAJUS: Aí a senhora achou que não era assim e resolveu brigar?

SM: Eu quis entrar na briga, porque a gente corre atrás, vai à luta, mesmo que tenha sido desfavorável, por enquanto. Acredito que os meus pedidos na OAB e na PGR sejam acolhidos. No dia 14 passado, o Congresso novamente derrubou veto presidencial contra emenda parlamentar que assegurou ascensão funcional, sem novo concurso público, para os técnicos de nível médio do MPU, seguindo o que ocorreu há um ano com relação ao PJU.

Ambas emendas ferem a competência privativa do STF de propor leis para seus servidores. Mais grave, excluem boa parcela da população sem condições de fazer curso superior, como eu. Venho de lar humilde — pai, caminhoneiro; mãe, dona de casa; quatro filhos; e eu, trabalhando desde os 16 anos, no papel de arrimo de família.

Após superar restrições econômicas e problemas de saúde, retomei este ano curso superior particular em Serviços Jurídicos e Notariais, algo que seria inacessível financeiramente se não tivesse ingressado no TJSE com o diploma de nível médio.

 

ANAJUS: Essas emendas terão impacto orçamentário?
SM: As decisões do Congresso Nacional derrubando vetos presidenciais terão impacto bilionário nas contas da União. Quem pagará a conta será toda a sociedade, principalmente os que foram excluídos de fazer concurso público para cargos de nível médio. E essa situação poderá atingir os cofres públicos estaduais.

 

ANAJUS: Com a derrubada dos vetos e se não houver nenhuma decisão a favor do respeito à competência exclusiva do STF, o que poderá acontecer?

SM: Para quem tem nível superior, haverá sempre a oportunidade de participar dos concursos públicos, sejam para técnicos e/ou analistas. Já para os que só têm nível médio de escolaridade, eles serão excluídos dos concursos públicos do Judiciário da União e do Ministério Público da União, e resulta em efeito cascata porque amplia para os tribunais estaduais, reforçando ainda mais as desigualdades sociais vividas por inúmeros brasileiros.  Só para se ter ideia, o IBGE apresentou uma pesquisa indicando que em 2022, no Brasil, o percentual de 53,2% das pessoas com mais de 25 anos ou mais de idade possuíam, no mínimo, o ensino médio completo; e 19,2%, o nível superior.

Em resumo, está em marcha uma grande exclusão social no País.

Créditos: Abnor Gondim (jornalista)