Trata-se de uma fábula em que se discute o problema de imigração/refúgio. No texto, gatos deliberam sobre a possibilidade de receber um “refugiado”. Abordam-se princípios jurídicos, além de conceitos como justiça e democracia
Flávio Rogério Felix da Silva
- Bacharel em Relações Internacionais pela UnB
- Cursando Direito no UniCEUB (9º semestre)
CAPÍTULO 1 – A QUEDA
Em uma noite benfazeja, feriu-me os tímpanos um estrondoso ruído, como se as telhas de barro vermelho sobre meu quarto estivessem desfazendo-se ao impacto de um meteoro. Nada, contudo, animou-me a voltar meus olhos para o alto, ainda na esperança de que alguma telha não tivesse sido rompida, senão a possibilidade de fitar as estrelas. Era uma noite de junho no céu de Sobradinho. O tempo era frio. O espaço, infinito.
Olhei então para cima fixamente. Nenhuma estrela. Nem o negro céu. Somente o encarnado teto. O barulho de telhas desarrumando-se continuava. Dei-me conta que não apenas continuava, como também era entrecortado por incompreensíveis gritos. Apurei os ouvidos para identificar algum pedido de socorro. Percebi que os ruídos mais se assemelhavam ao choro de uma criança. Saí ao quintal de minha casa fronteiriço à área verde povoada de árvores vigilantes. O imaginado astro cadente, o grito, o choro eram na verdade uma bola de gatos brigando.
Brigando havia dois. Ao redor de ambos, mais quatro felinos observavam com olhar vermelho de enfurecidos. Sempre que possível, um desses que estava de fora dava uma mordida nas poucas carnes de um gato magro, sujo e claramente um recém-chegado naquele lugar. O pobre lutava com todas suas forças, que não eram muitas, para desvencilhar-se de seu oponente, mais robusto, sem dúvida. Por fim o esperado: o esquálido gato não conseguia mais morder, nem unhar, nem gritar. Silêncio. Ele desabou. Ao tocar o solo, seu corpo levantou uma poeira fina avermelhada, comum na estação seca de Brasília. No chão apenas o corpo. A alma viajava no espaço desconhecido.
CAPÍTULO 2 – A DELIBERAÇÃO
O gato batalhador estava exausto. Não aguentou. Desmaiou. Naquele mesmo instante, ter-lhe-iam ceifado a vida com unhas penetrantes e dentes afiados como a lâmina de uma folha de capim-cidreira, não fora pela intervenção de uma a gata que por ele intercedeu sem hesitar. Ela disse em súplica: – Tenham-lhe misericórdia! Como podem matar alguém que está em busca de comida? Ao que o mais feroz dos gatos ali respondeu: – Esse ladrão! Entrou em nossa casa para furtar-nos a ração, gatuno!
Em socorro daquele corpo esgotado, interveio outra voz: – Ele não é um mero ladrão. Ele não furtou nada. É, antes, um faminto. Antes que o atacassem no telhado, contou-me fugir de um quintal muito mais pobre que o nosso. Rogava-me comida, quando o confundiram com um ladrão. Aqui felizmente ainda temos o que comer e como nos abrigar. Eu mesmo, em minhas noturnas andanças, já estive no quintal-natal dele. É um lugar de aparência corroída, fértil em doenças, escasso em alimentos, desorganizado, onde ninguém se entende com ninguém, morada da loucura de líderes insensatos que perseguem seus súditos, um quintal inabitável. Como vocês podem esquecer que também chegamos a esse pedaço de terra esfomeados, com frio, perseguidos e desamparados? Não fosse pela misericórdia da dona desta casa, onde nos alimentamos em troca de nossa presença afável, estaríamos mortos.
Um gato acinzentado interrompeu o discurso para dizer: – Se nós nos preocuparmos em receber todos que neste quintal chegam, acabaremos mortos de fome igualmente. Não há nem espaço nem comida para todos os gatos da Terra neste modesto quintal. Temos de estabelecer regras estritas para controle de entrada e saída neste território. Inspira-me a sabedoria de um louro gato do quintal ao norte do nosso quando disse: “O céu tem muros e rígidas regras de imigração. Quem tem política de portas abertas é o inferno!”
Sem esperar sequer um segundo, a perspicaz gata intercessora respondeu: – Só não podemos esquecer quem é Deus e onde estão o céu e o inferno. A propósito, a moradora desta casa leu-me uma passagem da obra-prima do mais famoso poeta de Florença. Estarreceu-me saber que Dante Alighieri tenha relatado em A Divina Comédia seu encontro com avaros e pródigos no quarto círculo infernal. Os avaros empurram incessantemente pesadas rochas que se chocam com outras similares empurradas por pródigos. Essa pena expiam uns e outros que, por viverem nos extremos, pecam contra a lei do equilíbrio na distribuição dos recursos dados pela Providência.
O gato acinzentado pronunciou-se sem demora: – Pois aqui definitivamente não estamos nem no céu nem no inferno. Estamos num simples quintal. Devemos, sim, estabelecer procedimentos para evitar a desenfreada invasão de nosso terreno por gatos de toda parte. Do contrário, nosso quintal pode tornar-se um inferno. Quero-o um céu. Então proponho que nos orientemos pelo princípio da quintalidade para definir quem aqui deve permanecer.
CAPÍTULO 3 – A QUINTALIDADE
A gata perguntou: – O que é a quintalidade?
O gato cinza respondeu: – A quintalidade é o óbvio. Quintalidade é o vínculo estabelecido por nossas regras de convivência pelo qual estamos atados a esta terra, este quintal. Esse elo nos confere primazia sobre os recursos de nosso território. Qualquer um que ouse querer entrar aqui deve passar por um rigoroso processo de seleção.
A gata retrucou: – Este território nem é nosso! Pertence à dona da casa, que tão caridosamente nos acolhe. A bem da verdade, estamos aqui de favor.
O gato disse enfaticamente: – Já estamos aqui há muito tempo. Nossos costumes aderiram a este quintal. Nós somos parte deste lote. Aqui caçamos nossos roedores e répteis. Aqui nos reproduzimos. Aqui recebemos a nossa ração. Sinto-me dono deste lugar.
Então a gata afirmou: – Não somos. Somos passageiros. Muitos de nós são filhos deste quintal, mas não têm a sua propriedade. Para gatos, este é uma área enorme, sempre capaz de suster mais um.
O gato disse prontamente: – Este gato imundo deitado em nosso terreno já é o décimo a tentar furtar-nos. Nenhum deles conseguiu. Nenhum deles permaneceu. Ele não haverá de ser o primeiro.
A gata interrompeu o discurso do gato acinzentado, para dizer: – Pois, eu proponho um outro parâmetro para orientar-nos as decisões sobre se este pobre animal poderá ou não fazer parte de nosso grupo.
O gato cinza perguntou: – Qual?
CAPÍTULO 4 – A NECESSIDADE
– A necessidade – respondeu a gata.
O gato disse sem hesitar: – Necessidades todos nós temos.
A gata replicou: – Exatamente, mas em graus diferentes. Por isso mesmo, é preciso fazer uma ponderação para auferir quem está em maior estado de necessidade: o que chega sem nenhum amparo ou o que já está acomodado.
Um gato de couro símile a um fraque concluiu: – Esse que aí jaz certamente tem grande necessidade de ser albergado neste quintal.
CAPÍTULO 5 – A ESSENCIALIDADE
A gata-filósofa disse assim: – Respeitar o princípio da necessidade é imperioso em razão de um outro princípio: a essencialidade. Pela essencialidade todos os gatos são dotados de uma mesma essência.
Um gato amarelo, de óculos, atento à confabulação, indagou: – Como podem dois gatos diferentes ter a mesma essência?
A gata respondeu: – Isso se assemelha ao fogo, que se manifesta independentemente. Uma chama pode nascer de uma castanheira ou de uma flor, de um gato ou mesmo de um rato, em diversos tempos e lugares. Fogo, porém, é sempre fogo. Poderia dizer o mesmo da luz. Poderia falar de todas as luzes. Limito-me a afirmar que, em todo amanhecer, a leste, sobre o descascado muro esverdeado de vegetais ressecados que delimita o quintal por nós habitado, entre as pingadas folhas da jabuticabeira, projetam-se as luminosas lanças emigradas do sol. São incontáveis raios solares individuados oriundos de uma única fonte. A natureza felina é comparável à do fogo ou da luz, com a diferença de que os gatos são dotados de um propósito cognitivo. Todos nós temos aspirações semelhantes e similares fraquezas, diferindo apenas nas formas e cores de nossos corpos, e, em linhas gerais, em tipos e graus de incompleto conhecimento. A essência de cada gato, o gato em si, almeja a realizar-se por completo de modo que possa ser mais feliz quanto mais seja possível contribuir para o esplendor e felicidade de todos os felinos, que compõem animicamente uma única família, não obstante, em sua saga, povoarem quintais diferentes. A realização de cada gato implica alcançar a perfeição ética mediante a libertação da ignorância, ao corrigir suas fragilidades éticas, um desafio titânico. Nesse percurso de realização pessoal, não é incomum um gato enfrentar maiores dificuldades, dores, sofrimentos que outros gatos, em razão de suas escolhas pessoais e de diferentes circunstâncias do acaso. E os gatos mais bem-sucedidos devem acolher, respeitar e apoiar os que tenham pior sorte, não apenas e prioritariamente porque ajudariam a si mesmos, mas por ser o egoísmo incompatível com a felicidade e sobretudo por pura e desinteressada solidariedade.
A gata complementou: – Sim, meditei nas histórias que minha mãe me contava sobre Platão e, com esse insumo, cheguei às conclusões que anteriormente enunciei.
CAPÍTULO 6 – A INTERQUINTALIDADE
Depois dessas reflexões, o gato cinzento atreveu-se a propor uma outra ideia para deliberação. O gato anunciou o princípio da interquintalidade.
Ele disse: – A interquintalidade consiste na transcendência da quintalidade. Compreendi que não há sentido em deixar de socorrer um felino apenas porque ele veio de outro quintal. Por quê? Porque os gatos são essências idênticas em lugares distintos, fenômeno explicativo do princípio da igualdade felina. Dessa maneira, enquanto estivermos melhor que ele, que o socorramos sempre.
E continuou: – Se não pudemos receber esse gato estirado no chão, que o recebamos depois de morto. Vendo-o um cadáver, proponho ao menos enterrá-lo em nosso quintal e cumprir os ritos fúnebres dos felinos.
CAPÍTULO 7 – DESPERTAR
Nesse momento uma surpresa.
A gata, com olhos piedosos, notou que um sopro de ar corria nos pulmões do alquebrado corpo. O gato ferido ainda vivia. Ele estava por despertar. Finalmente o gato se levantou.
Contado o recém-chegado, havia 12 gatos no quintal. Após a deliberação, propôs-se uma votação para decidir se acolheriam permanentemente o 12º gato, por direito inalienável dele. Todos disseram sim.
A gata-filósofa exclamou: – Viva a democracia!
Ao que um jovem gato magrelo perguntou: – O que é democracia?
A gata redarguiu: – Democracia é sair dos extremos para entrar na realidade.
Um outro gato, de pelos longos, vestido de negro, comentou: – Acho que, democratas, estamos sendo justos, se considerarmos a justiça como a qualidade de um mérito competentemente aplicado.
O gato cinza acrescentou: – Estamos sendo justos e solidários.
Em lágrimas o renovado gato agradeceu pela decisão, ao abraçar cada um de seus concidadãos.
Naquele momento eu me questionava por que podia ver todos os gatos e entendê-los sem que eles pudessem perceber-me. Minha presença era real, mas incorpórea. Eu era consciência pura concentrada num ponto do espaço. Assim podia testemunhar tudo em invisibilidade.
Tais foram os acontecimentos acompanhados por mim em silêncio. Em silêncio profundo. Suspirei. Olhei para cima. Emocionou-me uma caudalosa noite estrelada, plena como as águas de um grande rio cheio de vida a inspirarem-me paz. Uma lágrima libertou-se de meus olhos e fecundou a terra. De repente, distantes ficavam as estrelas. Tive a sensação de cair dentro de mim mesmo. Senti-me envolto no silêncio de meu ser. Escutei meu coração. Eu também havia despertado.