O autor narra, na primeira pessoa, os últimos momentos de seu pai, como se fosse o próprio, e os primeiros passos dele no Absoluto. Logo após partir, aprendeu com um anjo que “o direito é algo tão poderoso que transcende o tempo e o espaço” e que “pertence à Eternidade”
Flávio Rogério Félix da Silva
Bacharel em Direito (UniCeub), pós-graduando em Direito Digital e Direito Tributário (Complexo de Ensino Renato Saraiva) e formado em Relações Internacionais (UnB)
Capítulo 1
No mesmo lugar
“Bem-vindo à Eternidade!”. Foram essas as palavras do anjo que me recebeu tão logo deixei meu corpo, rompido definitivamente o nexo vital entre mim e aquele tétrico veículo boquiaberto, em espectral expressão do relaxamento depois da dor de quem faleceu por parada cardiorrespiratória resultante de uma broncoaspiração de erupções de vômitos ensanguentados onde me afoguei.
Pobres médicos e enfermeiros que me atenderam naqueles derradeiros momentos: tanto os preocupei. Cheguei mesmo a causar-lhes aflição. Sei, por ofício, como esses profissionais temeram erros no desempenho da função… e advogados. Não devo, contudo, resvalar na injustiça: a maior parte desses predestinados trabalhadores preocupava-se sinceramente comigo. Minha saúde física estava muito frágil.
Não nos desviemos tanto do assunto. Apenas quero dizer-lhes que, aos olhos dos que me socorreram em minha crise fatal, eu estava definitivamente morto.
Mas não era assim que me sentia desde minha internação havia um mês e 20 dias. Estava vivo, sentia-me mais vivo que nunca. Não estivera melhor desde que fui internado, em 6 de fevereiro de 2019, em decorrência de um acidente vascular cerebral a caminho de casa, quando retornava de uma sessão de hemodiálise. Num quarto de hospital, via os mesmos objetos de antes pintados nas mesmas cores: a reclinável cama móvel esbranquiçada, o verde desgastado do sofá do acompanhante, a mesa de madeira e suas curvas, a lixeira bege cautelosamente distanciada de mim, uma esverdeada poltrona confortável, uma cadeira de um amarelo apagado, as reluzentes portas do guarda-roupas embutido, a janela transparente, então coberta pelas persianas prateadas, por onde tanto quis escapar em direção à liberdade nas solitárias noites preso dentro de mim.
Não. Não pretendo cansá-los mais, aborrecê-los ou, quem sabe, entristecê-los com essa história iniciada com termos tão técnicos da Ciência de Galeno, à qual tanto havia servido. Tampouco farei como Brás Cubas, que, defunto, narrou acontecimentos de toda sua existência numa intricada trama. Irei pelo caminho contrário. Não retornarei demasiadamente às memórias do espaço tridimensional. Cingir-me-ei a acontecimentos que tiveram lugar depois do evento fatídico. Em todo caso, quero somente, antes de partir em definitivo, dar-lhes um testemunho, talvez de seu interesse. É meu dever informar-lhes o que passei, para apaziguar os corações de alguns, ao dissolver certos mistérios. Mistérios que sempre me haviam aguçado a curiosidade.
Capítulo 2
Num lugar diferente
Fisicamente morto, estranhei não poder mais comunicar-me com meus entes queridos, embora pudesse vê-los. Pois bem, ao notar-me livre, desprendido, saí pela porta do quarto caminhando naturalmente. Lá fora observei os paramédicos, um a um em retirada. Com uma expressão grave, avisavam a meus dois filhos mais velhos e meu irmão Antônio, a alguns metros dali, que a médica responsável por mim iria conversar com eles em seguida. Tentei dirigir a palavra a meus parentes, em um gesto antecipado, para acalmá-los, avisar-lhes que estava bem, maravilhosamente bem. Mas entristeci-me um pouco, ao reparar que não se davam conta de minha presença.
Lembrei-me então de um vídeo do Carl Sagan, no Youtube. Sagan cogitava cientificamente a existência de uma coordenada no espaço, uma coordenada secreta, invisível, inacessível. Ele começou a explicação mais ou menos da seguinte maneira, ao apontar para uma superfície plana: “Imagine um lugar chamado Planolândia, de apenas duas dimensões. Nesse local os seres se deslocavam apenas bidimensionalmente, em seu cotidiano. Essas criaturas não percebiam a existência de uma terceira dimensão, a altura. Se um ser tridimensional, do alto, conseguisse chamar sua atenção, ao gritar-lhes, provavelmente pensariam tratar-se de uma voz do além.”
Naqueles momentos eu era a voz do além, à diferença de não ter sido ouvido! Estava numa coordenada espacial onde não podia ser notado, mas era capaz de perceber tudo que se passava no mundo tridimensional. Não faz mal. Logo a médica chegou para conduzir meus familiares a uma sala isolada onde lhes deu notícia do acontecido.
Capítulo 3
Nenhum lugar
Todos já sabiam. Já haviam intuído algo errado. Ao acomodarem-se na pequena e descolorida sala ao lado da central de atendimento da enfermaria, a médica anunciou: “Fizemos tudo que pudemos, a situação dele era complicada… Ele não resistiu.”
Meu filho mais velho, Sérgio, colocou a mão na cabeça e chorou. Meu irmão pediu desculpas e chorou. Meu filho do meio, Flávio, parecia indignado, e não deixou cair lágrima. Estava resolvido a questionar por que tinham deixado que eu morresse. Ele duvidou. Indagou se tinham verificado se não era morte aparente. Falou da necessidade de esperar seis horas para declarar a morte definitiva. Questionou sobre o uso de medicamentos que me causavam ânsia de vômito. Coisa de estudante de direito do último período da faculdade. Por fim, perguntou: “Como vamos avisar isso à nossa mãe?”
Capítulo 4
Um filme
Vi-me num filme. Eu já havia assistido àquela situação na TV. Envolto em dúvidas, intrigado, um tanto desorientado, queria saber onde iria parar. Desejava conhecer o fim do filme. Ou o filme não teria fim? O anjo, ao notar minha inquietação, intercedeu: “Por enquanto ficará aqui por um breve tempo; depois, partirá.”
Após os esclarecimentos, inclusive, a respeito de como dar a fatídica informação à minha esposa, todos regressaram ao quarto onde eu havia falecido. Lá puderam contemplar-me em minha última cena naquele recanto do hospital. Meu corpo estava coberto com um lençol branco até o pescoço. Entrou, primeiro, Sérgio, que se dirigiu ao lado direito da cama; ato contínuo, aproximou-se meu irmão Antônio e, por último, Flávio. Sérgio afagou-me o cansado topete. Antônio pôs-se pensativo. Flávio olhou-me com apreensão reverente. Deram um tempo para reflexão. Ouvi a médica perguntar a Flávio se ele era o mais velho dos filhos. Não, doutora, o mais velho é Sérgio.
Tudo acabou em silêncio. Nada mais havia a fazer para salvar meu maltratado corpo. Como uma derradeira cena, decidiu-se que minha esposa, Maria Tereza, e meu filho mais novo, André, deveriam ser trazidos ao hospital, para uma espécie de despedida.
Capítulo 5
O quarto ao lado
Enquanto isso, encostei-me na parede e tive uma surpresa. Provou-se, para mim, inválida por completo, a lei da física segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço simultaneamente. Acontece que, ao escorar-me na parede, atravessei-a e invadi a alcova vizinha. Eu agora habitava um mundo onde vigia claramente a lei da interpenetrabilidade dos corpos. Ainda mais curioso é que naquele lugar constatei que meu vizinho também havia morrido, ou perdido o corpo físico, se preferirem. Os aposentos dele, para o meu espanto, eram muito distintos do meu. Não em aparência, mas pela presença de algumas criaturas horripilantes. Vi com assombro formas “aracno-humanas” por todas as partes: teto, paredes, piso.
Ah! Então era verdade a experiência noticiada por Lourival, um amigo cuja mãe, há anos, havia falecido. Numa dessas idas e vindas à UTI, ao acordar após uma anestesia, a senhora contou-lhe ter visto criaturas fantasmagóricas que se arrastavam pelo chão, pelas paredes e pelo teto nos corredores do hospital. Os fantasmas tinham formas animalescas. Chegavam a mover-se como aranhas. Foi algo semelhante ao que vi no quarto limítrofe. Aquilo me impressionou. Deixou-me pensativo. Em vida muitas notícias nos chegam desse mundo em geral incógnito. De praxe nos impressionam um pouco, mas logo as esquecemos. Quando você vivencia na pele certas realidades, as impressões em sua consciência são muito mais desconcertantes.
Nesses pensamentos me encontrava, quando, de repente, uma mão luminosa puxou-me dali, ao avisar-me: “Vamos, há que respeitar o destino dele.” Perguntei ao anjo que porvir teria meu vizinho. Eis a resposta: “Acima das leis meramente humanas do mundo que você abandonou, criadas e tão desrespeitadas pelos próprios homens, há um poderoso ordenamento jurídico de lógica consequencial cuidadosamente elaborado pelos demiurgos de todo o existente. Essa intrincada teia de normas é simplificada à medida que se ascende na Árvore da Vida e mais complicada ao caminhar-se em sentido oposto, de tal forma que, no Absoluto, existe apenas uma lei, a lei do amor, e a vida naquela região não se diferencia da mais completa felicidade; porém, no mais profundo do cosmos, a quantidade de leis multiplica-se ao infinito, para, em uma experiência forçosamente cognitiva e depurativa, reger aqueles que não souberam governar-se. Seu vizinho seguirá o caminho dele. Fez suas escolhas. Abreviou voluntariamente sua existência à revelia da vontade do Pai. Agora enfrentará as consequências. A misericórdia divina, entretanto, a ninguém abandona.”
Capítulo 6
O alcance do direito
Espargidas essas palavras pelo angélico ser, visitou-me a memória um acontecimento. Numa das noites em que Flávio me acompanhou no hospital, conversamos a respeito de vários assuntos da vida. Naqueles momentos de verdadeiro estudo humanista, o rapaz comentou comigo certos temas jurídicos. Ele disse que, na história do direito, discutiu-se muito sobre o direito natural e o direito positivo. Imantado na natureza, o direito natural existiria por si e poderia ser decifrado pela razão. Há quem acredite numa origem divina do direito natural, revelado pela inspiração sagrada. O direito positivo é o elaborado pelo homem. Aparece em leis, códigos. Flávio ilustrou-me também acerca dos estudos de Hans Kelsen, autor da obra Teoria Pura do Direito. Nesse livro, Kelsen propõe a norma hipotética fundamental, intangível lastro original de um ordenamento jurídico organicamente escalonado. Durante a conversa com meu filho, todos esses assuntos jurídicos tinham-me parecido muito abstratos, longínquos como o sol que se põe no horizonte. Ouvindo, contudo, as palavras do anjo, e existindo agora onde eu existia, concluí que o direito natural e o fundamento último da norma de Kelsen se imbuíam de realidade. O direito é algo tão poderoso que transcende o tempo e o espaço conhecidos na dimensão tridimensional da vida humana. O direito pertence à Eternidade.
Capítulo 7
Meu destino
O anjo levou-me a compreender o significado exato da expressão “calar fundo na alma”. Fiquei impressionado com a sabedoria de sua resposta, que moveu ondas de compreensão no oceano profundo de meu ser. A luz de seu verbo suscitou-me ciclópicas revelações. Jamais me esquecerei da luminosidade em seu discurso.
Chocou-me também algo prosaico. Assim que todos se retiraram da sala, Sérgio e Antônio foram a Sobradinho para buscar Tereza e André. Flávio montou guarda na porta do quarto. Uns 20 minutos depois, duas funcionárias pretenderam entrar no recinto. Disseram a meu filho que precisavam levar o corpo ao necrotério. Que desagradável ser levado a um necrotério. Flávio pediu-lhes que esperassem, porque a viúva iria fazer-me uma última visita no hospital. As enfermeiras concordaram. Elas se retiraram.
Capítulo 8
Nesse meio tempo
Uma reflexão. Ao analisar a sucessão de fatos, convenci-me de que o tempo não é uma linha reta, mas uma curva, ao menos no meu caso. Explico-me: depois do derrame, voltei aceleradamente à infância, até expirar. Não digo à felicidade da infância, de que todos temos saudade. Refiro-me às limitações: já não podia movimentar-me livremente, usava fraldas, não conseguia articular bem as palavras, chorava, inseguro. E minha cama parecia um berço.
Capítulo 9
Apoio contínuo
Numa daquelas noites hospitalares, Flávio, acreditando que eu dormia, comentou com sua mãe estranhar por que um médico que tanto se sacrificara por seus pacientes tinha ficado hipertenso, hemiplégico, com câncer e padecia de insuficiência crônica renal. Tereza respondeu também achar aquilo estranho. Disse ela: “Quando moramos em Espigão D’Oeste, em Rondônia, seu pai, no hospital dele, não cobrava consulta de índios, porque eram donos originários da terra, de padre, pois serviam a Deus, nem de pobres, já que não podiam pagar.” É verdade. Era minha filosofia profissional. Devo fazer-lhes uma confissão. Havia algo de bom nos sofridos dias internado: nunca estive desamparado; sempre havia alguém amorosamente cuidando de mim, na Terra e no céu. A Providência recompensou-me.
Imerso nessas lembranças, fui trazido ao presente, por um barulho súbito de passos apressados.
Capítulo 10
O reencontro
Eles chegaram. Meu filho mais novo e minha esposa entraram no quarto. Depararam-se comigo. Ele chorou por dentro. Ela chorou visivelmente, ao dizer: “Um dia nos reencontraremos do outro lado.” Mas eu estava ali. Ela pressentiu minha presença e comentou: “Sei que você está aqui.” Ela não me via. Apenas sentia minha presença. Abracei-a, enquanto ela olhava entristecida para meu corpo imóvel. Era um diálogo fisicamente incompleto e um abraço materialmente não consumado que se realizaram pelo amor. O anjo acompanhava tudo piedosamente.
Capítulo 11
Você lembra?
Você lembra, Tereza, a piadinha que fiz em nosso ensaio de encontro final? Ainda no hospital S. L., da Asa Norte, não o da Asa Sul, onde bati as botas, brinquei para não vê-la tão triste. Acompanhada de Flávio, você me visitou um dia depois de meu acidente vascular cerebral. Quando você me viu prostrado naquela cama num frio quarto de UTI, Flávio perguntou-me se eu sabia quem era aquela mulher à minha frente. Você recorda a resposta? “Maria Tereza. Estou aguentando essa mulher há 40 anos!” Todos rimos. Até você. Eu sou mesmo um brincalhão. Em nosso último encontro, Tereza, você não sabe, mas eu lhe disse: “Passo a Eternidade a seu lado.”
Capítulo 12
Foram-se
Logo, logo vieram a médica e duas enfermeiras. Avisaram que era preciso levar o corpo ao necrotério, lugar de melhores condições climáticas para abrigar um defunto. Meus parentes olharam-me pela derradeira vez naquela paragem. Então partiram. Decidi acompanhá-los. Segui-os pelos corredores até um elevador de paredes de vidro que permitiam ver a paisagem brasiliense. Distraído com a beleza do céu naquele dia esplendoroso, deixei levar-me pelo poder atrativo da alva leveza de uma nuvem. Foi desse modo que nela cheguei. Flutuei pela atmosfera ensolarada. Encantaram-me pássaros de perto voando alegremente em sua liberdade. Afagaram-me as luzes do dia no vento que passava para encher-me de vida. Como era bom estar livre da lei da gravidade! O anjo, sempre ao meu lado, tocou com a mão em meu ombro direito, ao convidar-me a olhar para baixo. Vi quando meus parentes entraram no carro branco de Sérgio. Vi Flávio caminhando entre as árvores do estacionamento do hospital. Enfim todos tinham ido embora.
Capítulo 13
Volta para casa
Enquanto os outros regressavam à nossa casa, em Sobradinho, notei que Flávio não fora por um itinerário habitual. Seu velho Ford Ka preto, deslizando pela geometria plana de Brasília, em vez de seguir em direção à Asa Norte, na avenida W3, parou inesperadamente no envidraçado Brasília Shopping.
Que coisa! Eu morro e ele vai ao shopping! Qual foi minha surpresa, ao observar que Flávio apenas havia estacionado na entrada lateral do estabelecimento comercial, onde recebeu uma mochila. Eu, livre no ambiente, vi quando um amigo dele lhe entregou uma bolsa e um abraço condolente. Era provavelmente seu colega de trabalho. Ao sair de manhã para trabalhar, Flávio costumava levar consigo aquele apetrecho.
Flávio, Flávio, você mal sabia que tinha de ir o mais rápido possível à casa. Eram tantos papéis necessários para tramitar as exigências burocráticas na sequência da vida! Essa burocracia é mais complicada que a morte!
Capítulo 14
Por quê?
Era eu e a natureza. Nada mais. Sim, e o anjo sempre junto a mim. Depois que Flávio se foi do shopping, retornei ao hospital, em cujos corredores muita gente ia e vinha. Sabem, naquele burburinho do pesado ar hospitalar, muitas dúvidas punham-me meditativo. Por que morri daquela forma? Teria havido erro médico? Por que me transferiram de um aposento à frente da central da enfermaria para um quarto distante, o último do corredor, logo às vésperas de minha morte? Por que um dos remédios que tomei contribuiu para me causar o mal-estar estomacal que redundou num vômito abundante, invasor de meus pulmões a desatar a parada cardiorrespiratória fatal? Por que cada medicamento que se toma tem um efeito colateral para o qual se necessita outro remédio e assim sucessivamente? Não seria a indústria farmacêutica capaz de deter um encadeamento de efeitos colaterais? Não seria a medicina apta a efetivamente curar? Por quê? Por quê?
Capítulo 15
Os anjos
Mais importante que respostas para essas perguntas foi a revelação que lhes contarei agora. Soube que havia muitos anjos nos hospitais. A enfermeira amorosa. A pura moça da limpeza que com zelo arrumava meu quarto. O senhor que manejava a máquina da hemodiálise. Uma médica plantonista aparentemente recém-formada que me socorreu numa noite de desespero. Todos anjos. O Altíssimo envia seus emissários para trabalhar pela humanidade, e a humanidade não os reconhece. Como descobri que eram anjos? Depois do incidente letal, eles continuavam cumprimentando-me respeitosamente, como sempre. Eu respondia seus cumprimentos. Morto, somente depois de certo tempo notei algo óbvio: esses gentis funcionários seguiam vivos no espaço tridimensional. Então indaguei ao anjo que me guiava: “Como podem comunicar-se diretamente comigo?” A resposta: “São anjos. A Divindade também é misericórdia. Mais do que você pode imaginar.” Instintivamente insisti: “Mas alguns deles desempenham função tão simples!” O anjo emendou: “É aparentemente simples, porém, poucos estão aptos a fazer o que eles fazem por inspiração divina. Não se sabe quanto bem deles emana. Você é capaz de medir o valor de um gesto de amor? Pode estimar a força curadora de um sorriso? Já percebeu como é sagrado o poder da consolação? Você, um ex-seminarista, nunca leu Lucas 22:27? Nessa passagem, diz o mais elevado de todos: ‘Entre vós, eu sou aquele que serve.’”
Capítulo 16
Outro dia
Apagado o sol, acesas a lua e as estrelas, permaneci no hospital. Muitas outras coisas sacras me foram reveladas. Perdoem-me. Não posso contá-las. Um dia todos saberão. Não temam. Adianto que se trata de luz, muita luz.
Logo de manhã, pude visitar meus familiares. Finalmente me recebeu meu lar. Quanto quis retornar ao seio familiar! Lá estava: em minha casa. Aprendi algo interessante no esperado retorno. Compartilho esse aprendizado com vocês. Fiquei feliz de ver minha família mais unida, como nunca a havia visto. Era um fenômeno muito particular. Meus filhos, minha esposa, meu irmão, todos procuravam encontrar-me uns nos outros. Isso os fazia mais compreensivos, mais amigos, mais irmãos. Dividiam-se harmoniosamente as tarefas. No outro dia, eu seria velado.
Capítulo 17
O silêncio total
Eram dezoito horas de uma quinta-feira ainda ensolarada, aos 28 de março de 2019. Encontrava-se meu corpo deitado em seu leito funeral numa sala da Paróquia Bom Jesus dos Migrantes, em Sobradinho. Flávio, você, que tanto apreço havia demonstrado aos migrantes, em sua fábula Los gatos, agora velava por um migrante rumo à Eternidade. A propósito, intrigante é o nome daquela paróquia: “Bom Jesus dos Migrantes”. A sorte gosta mesmo de paradoxalmente dar luz a coincidências. Tão irônico é o acaso, que essas casualidades nasceram de uma morte.
Cessem as divagações. Falemos de como estava o morto. Vestiram-no com um terno negro, uma camisa verde-claro, uma argêntea gravata. Via-se um semblante sério, tranquilo, impassível, inerte.
O cheiro dos lírios era inebriante. Um perfume triste impregnava o recinto. Muitos vieram despedir-se de mim. Numa mesa, viram café e biscoitos. Não sei como alguém pode comer e beber num velório. É um costume. Flávio comeu três ou quatro biscoitos. André tomou um café. Tereza bebeu água. Sérgio saiu para lanchar. Os convidados chegavam. Povoavam o lugar. Depois da meia-noite, retiraram-se.
Todos haviam saído, exceto Flávio e sua namorada. Resolveram ficar. O relógio apontava três horas. Alta ia a noite. Ambos não dormiam. Flávio leu-me uma passagem da Bíblia. Filho querido, sua prece alcançou-me. Obrigado. Às quatro horas, Flávio deitou-se no chão. Estava cansado. Cochilou um pouquinho. Às seis horas, levantou-se, mas já estava acordado havia meia hora. Pensava na vida. O tempo passava. Tempo. Tempo. Tempo.
Capítulo 18
Amanheceu
No amanhecer me visitaram outros conhecidos, até o encerramento do velório, às 12 horas. Mesmo uma rival de minha esposa esteve presente. Uma reconciliação. Que bom. Apenas num cristalino 30 março, fui embora em definitivo.
Capítulo 19
Adeus
Sim. Era 30 de março com um dourado início de tarde em Formosa, no fabuloso Estado de Goiás, joia do Planalto Central brasileiro, tão aberta aos céus. Meu corpo foi cremado no Portal do Sol, à margem da BR 020. Antes da cremação, Flávio visitou-me. Queria certificar-se de que o meu corpo estaria incólume, se é que se pode usar esse vocábulo para um cadáver. Um funcionário mostrou-lhe o local. O dono do estabelecimento havia autorizado a vistoria.
Campos elísios. Campos da esperança. Campos verdes, onde se pusera o crematório. Tudo muito organizado. Limpo. Na entrada dele, havia espécie de capela cuja extremidade interna dotava-se de uma esteira para transportar, após alguma cerimônia religiosa, o féretro ao forno isolado em um cômodo em regra inacessível. Na iminência de entrar no grande forno metálico, haveria ainda alguma preparação. De resto, incinerado o corpo, reúnem-se as cinzas numa urna funeral.
Fui médico. Pareceu-me melhor à saúde pública a cremação em vez de um enterro. O meu destino físico final foi o mesmo do rei Saul e de seus filhos. Que honra! Tive a sorte da ave Fênix. Voltei ao pó, como preceituam os livros sagrados. O rito crematório acelerou o processo.
Capítulo 20
O tribunal
Livre! Livre! Livre! Findo completamente o processo natural da vida, de acordo com as leis do direito natural e as do direito positivo, entregues as cinzas aos familiares, conduziu-me o anjo à linha do horizonte ainda à época verde do cerrado brasiliense. Longe, entre o céu e a Terra, havia uma imensa catedral. Um templo-tribunal. No pórtico dele, dois anjos luminosos com vestes branquíssimas aeradas ao sabor do vento do início do outono empunhavam espadas flamejantes. Duas hercúleas colunas de cristais altas, de uns 80 metros ou mais, guardavam a porta central das sete entradas da retangular fachada do imenso edifício circular de ágata azul, precedido por um amplíssimo salão de mármore, calçado com jades brancos e turmalinas negras, de tal forma dispostos, que formavam um tabuleiro de xadrez. Nessa sala de espera, vislumbravam-se árvores floridas de todas as partes da Terra. Vi ipês de todas as cores, como há em Brasília. Vi cerejeiras. Vi baobás. Vi bordos. Vi cedros. Vi bonsais. Na parte central, erguia-se, portentosa, uma paineira de copa púrpura em virtude de vivíssimas flores. Em sua sombra, impunha-se um pé de jambo, com rubros frutos apetitosos.
Havia mais detalhes inefáveis, que me apresso em relatar-lhes. Naquele hall, cujo teto era o firmamento, ressoavam imponentes as mais sublimes melodias criadas pelo espírito humano. Ouvi Bach, Josquin, Beethoven, Vivaldi, Mozart, Liszt, Chopin e diversos compositores que ainda não conhecia. Após longa espera, em que pude refletir sobre toda minha vida, resolvi sair um pouco pelo mesmo lugar por onde havia entrado, antes que me chamassem para apresentar-me frente à balança da justiça. No exterior do Atrium, admirei-me novamente com uma perfeita arquitetura que, em disposição de triângulo equilátero, erguia três torres de perolada opala multicolorida engastadas no meio do prédio. Uma dessas torres alinhava-se com a entrada principal. Era verdadeiramente um ambiente colossal. Ao regressar, pois me haviam chamado, passei pelo vestíbulo gigantesco, sem mais delongas, para ingressar no espaço circular, onde contemplei toda a sublime beleza do Universo, gravada nas paredes cósmicas daquele lugar sagrado. No seu interior, muros inexistentes. As paredes daquele tribunal eram as fronteiras do espaço infinito. O sem-fim, todas as constelações, todos os planetas, todas criaturas – em sua forma perfeita, a de luz – espelhavam-se em minhas retinas. No centro do lugar, porque o infinito tem um centro de onde parte tudo, havia uma esfera luminosamente celeste em que se acomodavam magistrados.
Fui levado para dentro dessa esfera. No encontro dela com um piso de esmeralda, cuja aparência se assemelhava a verdes águas do litoral do Nordeste do Brasil, havia uma cadeira de madeira, onde me sentei. Pude contemplar a seriedade e a pureza do olhar daqueles julgadores incorruptíveis. Os juízes posicionavam-se nas circunferências superiores da esfera, de maneira que, para divisá-los, deveria voltar a cabeça para cima. Estava face a face com a suprema justiça. Ao meu lado direito, uma imaculada mãe apresentou-se como minha advogada. Seu nome era Misericórdia. À minha frente, pousou um anjo chamado Consequência, encarregado de ler o livro de minha vida. Tudo estava posto. O julgamento começaria imediatamente.
Foi dado a mim manifestar-me. Disseram-me que podia fazer um pedido. Diante de tudo aquilo, queria falar com todos os meus parentes, meus amigos, meus conhecidos, meus conterrâneos, meus compatriotas, com toda a humanidade. Isso não era permitido. Então pedi que se abrisse uma fenda no tempo e no espaço. Roguei fazer chegar aos quatro cantos do mundo a recomendação de que todos busquem ser pessoas melhores, independentemente de suas crenças ou da ausência delas. Pedi alertar que de tudo que se faz há de se prestar contas, pois nada foge à justiça, cujo anteparo é a esperança de misericórdia.
Os juízes atenderam minha súplica. Ordenaram ao anjo Consequência que copiasse as últimas páginas do livro de minha vida até a iminência de meu julgamento. Não há limites para a Divindade. Decidiu-se que este texto viria a ser encontrado nas dependências de um grande tribunal brasileiro. Um dos juízes determinou igualmente: “Façam-se os ajustes necessários para cumprir a petição dele da melhor forma possível.”
Por fim, envolveu-me uma cintilação tão diáfana, pacífica e reconfortante, que se acendeu, em minha alma, uma nostalgia, na certeza de que, um dia, nós, seres em esforço para nos tornarmos verdadeiramente humanos, nos reuniremos no mais elevado espaço absoluto, de onde partimos num instante longínquo.