Artigo de opinião: Entre a Invisibilidade e o Fardo: O Novo Paradigma do Trabalho no Poder Judiciário e a Urgência do Equilíbrio Social e Psicológico para os Servidores

Como a transformação estrutural do Judiciário aprofundou desigualdades internas e revelou um paradoxo moral no tratamento dos seus trabalhadores.
Por: MELO, Willian Pinto.*

Introdução

O Poder Judiciário brasileiro, ao longo de sua história, sempre se viu às voltas com uma sobrecarga crônica de trabalho. Fruto direto de um traço cultural profundamente enraizado — a litigiosidade —, essa sobrecarga reflete a insegurança social, a percepção de impunidade e a perpetuação de privilégios de uma elite política resistente à renovação. Esse cenário não apenas pressionou o funcionamento da máquina judiciária, mas também acentuou as contradições e desigualdades dentro da própria estrutura do Poder Judiciário.

Hoje, o que se assiste é a consolidação de um novo modelo de organização do trabalho judicial, marcado pela delegação massiva de tarefas decisórias aos servidores, sem que, contudo, tenham sido asseguradas a esses trabalhadores as proteções sociais e psicológicas indispensáveis a quem sustenta o sistema. Este artigo propõe uma reflexão sobre essa realidade e aponta os caminhos para a necessária recomposição do equilíbrio institucional.

A sobrecarga histórica e o redesenho do Judiciário no Brasil

Não é novidade que a cultura do litígio — alimentada por um Estado historicamente incapaz de prover segurança social plena — fez do Judiciário o palco da resolução dos mais variados conflitos. Para lidar com o volume crescente de processos, medidas protetivas aos magistrados foram adotadas: licenças especiais, folgas prolongadas, indenizações generosas e férias diferenciadas.

Com o advento das novas tecnologias, acreditou-se na possibilidade de uma revolução da eficiência. O que se viu, porém, foi a transferência silenciosa da monumental carga de trabalho para os servidores, que passaram a conduzir o processo em suas minúcias: elaboram minutas, preparam decisões, sugerem soluções.

O juiz, cioso de sua responsabilidade constitucional, passou a concentrar-se nos atos que lhe exigem presença direta: audiências, sustentações orais, sessões plenárias. O termo “proposta de decisão” tornou-se, em muitos casos, um formalismo que oculta a verdadeira autoria das soluções aplicadas.

A face invisível: o esgotamento silencioso dos servidores

Um episódio recente ilustra essa realidade sem disfarces: em uma “live” aberta a tribunais de todo o país, um servidor demonstrou, ao vivo, a elaboração de uma sentença completa com o auxílio de inteligência artificial — sem qualquer participação do magistrado. O que antes se sussurrava nos corredores das repartições transformou-se em verdade pública e inescapável.

Entretanto, apesar dessa drástica redistribuição das tarefas, o Poder Público não se moveu para assegurar aos servidores as mínimas condições de proteção. Pressionados por metas inalcançáveis, obrigados a custear do próprio bolso cursos e equipamentos para acompanhar os avanços tecnológicos, os servidores veem suas jornadas consumidas pelo excesso e seus corpos e mentes adoecidos.

O silêncio sobre o sofrimento psíquico é alimentado pelo medo: o receio de perder a função comissionada e, com ela, parte essencial de seus rendimentos. A espada de Dâmocles pende, invisível, mas constante, sobre suas cabeças.

O paradoxo moral e o risco de uma distopia institucionalizada

Enquanto isso, os benefícios assegurados aos magistrados não apenas foram preservados, mas ampliados: folgas periódicas, indenizações por licenças e férias não usufruídas, adicionais por tempo de serviço, gratificações por acúmulo de função. Um rol de direitos que, por sua natureza, reconhecem o desgaste da função jurisdicional — mas que se tornou um privilégio restrito a uma única parcela da engrenagem judicial.

Esse contraste desnuda um paradoxo moral. O servidor, que hoje arca com o maior peso da produção judiciária, não tem assegurada a proteção equivalente. O Estado, ao naturalizar essa assimetria, resvala em um utilitarismo ético questionável. Um modelo que explora o trabalhador até o limite da exaustão e, então, o descarta como peça substituível.

Essa lógica não cabe em um Estado Democrático de Direito. Ela fere o princípio da função social do trabalho, esvazia o valor intrínseco da vida humana e transforma o aparato judiciário em um simulacro de justiça.

Conclusão: pela necessária recomposição do equilíbrio

Se há um dever inadiável que se impõe ao Estado, é o de restituir a dignidade aos seus servidores. A saúde, a segurança e o bem-estar de quem sustenta, na prática, a entrega da prestação jurisdicional possuem o mesmo valor daqueles que a assinam.

Chegou o tempo de o Poder Público agir, não com palavras, mas com medidas concretas: políticas institucionais que protejam o servidor, que distribuam equitativamente as vantagens e as salvaguardas, que reconheçam no servidor do Judiciário o ator indispensável na realização do direito.

Porque, no fim das contas, o servidor não pede privilégios. O servidor pede justiça. E justiça nunca foi favor. Sempre foi — e sempre será — um direito.

*A opinião do autor não, necessariamente, reflete a opinião oficial da ANAJUS.