O caso, todavia, se apresenta mais complexo do que a popularizada versão liberdade religiosa x meio ambiente. Se nos ativermos unicamente ao suposto conflito de dispositivos constitucionais, comumente reproduzido na mídia e mesmo pelos tribunais
Portal do Magistrado
07/08/2018
Será apreciado pelo STF o Recurso Extraordinário (RE) 494601, cuja discussão, originada no Rio Grande do Sul, interpela a Corte sobre o abate de animais nas religiões afrobrasileiras. Nosso argumento é que o enfrentamento da questão demanda um ato de especial compromisso dos(as) julgadores e deles(as) exige um movimento de alteridade, para além de sua autoridade judicial. Exige o reconhecimento de que cada tradição jurídica – seja a tradição dos terreiros, que se pretende debater, seja a da Suprema Corte, que se pretende legítima para debatê-la – produz sentido constitucional, justamente na medida em que articula seus repertórios interpretativos particulares. Parafraseando Robert Cover, na medida em que se constrói uma narrativa a partir não só de legalidade, mas de linguagem e mitologia. Assim, no enfrentamento das questões colocadas pelo RE 494601, não estamos diante apenas de uma disputa entre teses jurídicas, mas de uma encruzilhada entre mundos normativos.
O caso, todavia, se apresenta mais complexo do que a popularizada versão liberdade religiosa x meio ambiente. Se nos ativermos unicamente ao suposto conflito de dispositivos constitucionais, comumente reproduzido na mídia e mesmo pelos tribunais, vislumbraremos uma tensão entre duas vertentes jurisprudenciais que o STF vem consolidando: de um lado, a proteção das crenças e cultos, cuja mais recente manifestação foi a ADI 4439 sobre ensino público religioso (com críticas e ressalvas que extrapolam o escopo deste artigo); de outro, a proteção dos animais, conforme a decisão da ADI 4983, referente à prática da vaquejada, e antecedentes.
Ambos os standards, porém, parecem insuficientes para a objeto do RE 494601. A nosso ver, a formulação “direitos religiosos” x “direitos dos animais” não esgota o problema em questão. Primeiro porque ela ostenta uma falsa dicotomia, ou, no mínimo uma dicotomia enviesada, uma vez que é precisamente nos terreiros (das inúmeras denominações existentes), à semelhança de outras comunidades tradicionais, que se opera uma cosmovisão holística e integrada entre cultura e natureza. Em segundo lugar, porque, ao lado da importante garantia de exercício desembaraçado das crenças e cultos de matriz africana, estamos simultaneamente falando de assegurar os direitos à identidade, à diferença, à alimentação, ao patrimônio cultural e ao modo de vida desses povos tradicionais. Assim, no julgamento do RE 494601, uma sociedade constitutivamente plural se pergunta sobre a extensão do valor constitucional da diversidade, cuja limitação poderá incorrer em grave injustiça cognitiva e racismo epistêmico.
Para ler a notícia na fonte, clique aqui