A afirmação é do advogado Renato Ferraz em artigo publicado no site Consultor Jurídico, ao apontar que podem gerar danos ao erário público os casos de servidores designados para atividades não relacionadas com as suas atribuições legais

Anajus Notícias
22/02/2023

É assédio moral obrigar um servidor a praticar desvio de função, afirma o advogado Renato Ferraz *, especialista em Direito Constitucional, em artigo publicado nesta quarta-feira, dia 20, no site Consultor Jurídico, com o título “Assédio moral no serviço público: violação à dignidade humana”

O autor sustenta que no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o responsável por tal prática lesiva foi enquadrado no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa “em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém”.

Na avaliação de Ferraz, o desvio de função por causar dados aos cofres públicos por ferir a súmula 378 do STJ por significar enriquecimento ilícito da administração pública. “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”, reproduz trecho da súmula.

O combate ao desvio de função é uma das principais bandeiras de luta da Anajus (Associação Nacional dos Analistas do Poder Judiciário e do Ministério Público da União) desde que foi criada em 2008 em defesa dessa carreira de nível superior no quadro de pessoal da União.

Leia o artigo na íntegra:

Assédio moral no serviço público: violação à dignidade humana

O assédio moral é um soco na alma. Essa conduta perversa deve ser combatida por todos. A intervenção é necessária para detê-lo. Infelizmente, a humilhação repetitiva e prolongada tornou-se prática quase que considerada natural no serviço público: federal, estadual e municipal; causando graves transtornos à saúde física e emocional do servidor público.

Salta aos olhos a violação da dignidade humana!

O assédio é gênero. Suas espécies são: o assédio moral e o assédio sexual que é crime tipificado no artigo 216-A, do CP. O assédio moral ainda não é crime. A criminalização do assédio moral pode ajudar a diminuir os tristes casos, estabelecendo um efeito pedagógico.

Em 2019, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 4.742/01, tipificando o crime de assédio moral. O projeto foi enviado ao Senado, em 13/3/2019. Está engavetado.

O assédio moral é uma conduta abusiva. Na nossa formação social trazemos essa marca do abuso de poder. É comum a frase:

“- Você sabe com quem está falando?”

“- Manda quem pode e obedece quem tem juízo”

Vejamos o que diz Celso Antônio Bandeira de Mello [1]:

“Sabe-se que, infelizmente, no Brasil, casos de desvio de poder existem aos racimos [cachos], ao ponto de poder-se imaginar que somos expoentes na matéria. Sem embargos, estas manifestações patológicas do exercício da autoridade pública ocorrem em toda a parte.”

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 1.286.466/RS, sendo relatora a ministra Eliana Calmon decidiu:

“A prática de assédio moral enquadra-se na conduta prevista no art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrativa, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém.”

Destaca-se que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho são fundamentos da República. (CF, artigo 1º, III e IV). E que a ordem social tem como base o primado do trabalho. (CF, artigo 170)

Daí a observação de Daniel Sarmento [2]:

“No Brasil, a dignidade da pessoa humana figura como ‘fundamento da República’ no artigo 1º, inciso III, da Constituição brasileira. O princípio já foi apontado pela nossa doutrina como o “valor supremo da democracia”, como a norma das normas dos direitos fundamentais, como ‘princípio dos princípios constitucionais’, como o coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana.”

A propósito, o trabalho é Direito Fundamental (artigo 6º, CF), e, portanto, deve a Administração Pública pautar sempre sua conduta consoante os princípios da dignidade humana, legalidade, impessoalidade e moralidade promovendo a tutela dos direitos fundamentais e meios de combate ao assédio moral, com ênfase na prevenção e inibição da conduta abusiva.

Neste ponto, a lição de Renato Ferraz [3]:

“O Princípio Constitucional da Legalidade é um antídoto contra o assédio moral. O administrador público não tem vontade. Não tem desejo. Ele é um mero executor do ato. Mero executor da lei, vale dizer, sua conduta tem que ser pautada na legalidade constitucional.”

De um modo simples: o assédio moral é a reiteração da violação da dignidade humana!

Dispõe o artigo 2º da Lei nº 3921/2002, do Estado do RJ:

“Considera-se assédio moral no trabalho, para os fins do que trata a presente Lei, a exposição do funcionário, servidor ou empregado a situação humilhante ou constrangedora, ou qualquer ação, ou palavra gesto, praticada de modo repetitivo e prolongado, durante o expediente do órgão ou entidade, e, por agente, delegado, chefe ou supervisor hierárquico ou qualquer representante que, no exercício de suas funções, abusando da autoridade que lhe foi conferida, tenha por objetivo ou efeito atingir a autoestima e a autodeterminação do subordinado, com danos ao ambiente de trabalho, aos serviços prestados ao público e ao próprio usuário, bem como, obstaculizar a evolução da carreira ou a estabilidade funcional do servidor constrangido.”

O assédio vem do latim ad sedere, que significa “sentar-se em frente de”. Há o sentimento de ser ofendido, menosprezado, rebaixado, constrangido e humilhado. Dessa maneira, assediar, significa perseguir com insistência, que é o mesmo que molestar, perturbar, aborrecer, incomodar, importunar.

A primeira forma de trabalho foi a escravidão. No latim vulgar, trabalho é tripaliare e significa torturar. No latim clássico é tripalium, instrumento de tortura.

O assédio moral é muito antigo na história. O homem sempre foi o lobo do próprio homem (Hobbes). Porém, somente na década de 1980 é que começa o seu estudo científico pelo médico alemão Heinz Leymann e, posteriormente, pela psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, que conceituou o assédio moral [4]:

“qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra à dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.”

Acerca do assédio moral é a lição de Renato Ferraz [5]:

“toda conduta reiterada dos agentes públicos, no âmbito da Administração, que deteriorando o ambiente do trabalho e qualidade do serviço, viola a dignidade humana ou/e a integridade física e emocional dos servidores públicos.”

Vale acentuar, que para Convenção 190, da OIT, de 2019, basta apenas uma conduta perversa, para tipificar o assédio moral. Não obstante, o majoritário na doutrina e jurisprudência é que a conduta do assediador tem que ser reiterada.

Logo, é suficiente o elemento normativo “conduta reiterada” e “viola a dignidade”. Não é necessário o dano psíquico emocional ou físico para caracterizar o assédio moral. Pois, seria muito difícil punir o assediador. Iria ficar refém da prova pericial.

No mesmo sentido, Sergio Pinto Martins [6] onde “o dano psíquico não é, portanto, elemento para caracterização do assédio moral”.

Um só ato seria dano moral, e, se for o caso, crime de calúnia, injúria ou difamação. Nem todo dano à personalidade configura o assédio moral, mesmo sendo ato de violência.

Por outro lado, poder-se-ia classificar o assédio como uma espécie do gênero “dano moral”. Aliás, à luz da Constituição vigente o dano moral nada mais é do que violação do direito a dignidade, consoante Sergio Cavalieri [7]

O assediador demonstra preferência pela manifestação não verbal de sua conduta. É para dificultar sua estratégia. Quando ele é acusado diz que: foi mal-entendido. Que o servidor é sensível ou encrenqueiro.

Podem ser citados como exemplo: suspiros, sorrisos, trocadilhos, indiferença, erguer de ombros, olhares de desprezo, silêncio forçado, ignorar a existência da vítima, deboche, ironias e sarcasmo, colocar na “geladeira”, controlar o tempo no banheiro, metas impossíveis.

O artigo 2º Lei nº 3921/2002, considera assédio moral o desvio de função. Vejamos:

“determinar o cumprimento de atribuições estranhas ou atividades incompatíveis com o cargo do servidor ou em condições e prazos inexequíveis; designar para funções triviais, o exercente de funções técnicas, especializadas ou aquelas para as quais, de qualquer forma, sejam exigidos treinamento e conhecimento específicos”.

No desvio de função, surge o servidor “faz de tudo”. Ah, me lembrei dos estagiários de Pindorama como fala Lenio Streck [8], “afinal, eles dão sentenças, fazem acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos…”

Um cheiro de improbidade ronda a Administração Pública…

Aliás, foi editada a Súmula nº 378, do STJ, contra o enriquecimento ilícito da administração: “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”.

Mas, desviou de função é, sim, assédio moral!!!

O assédio moral, como fenômeno social de tempos antigos, porém de reconhecimento recente, configura-se como uma praga a ser combatida, por razões: humanísticas, sociais e econômicas; visto que o assediador, desestimula e adoece os servidores públicos e, por óbvio, diminui a produtividade e eficiência.

O assunto é muito relevante. Está na ordem do dia. Não pode predominar a lei do mais forte. Senão, o perverso será rei. Os fins não justificam os meios. Precisamos abrir os olhos e denunciar o evidente abuso de poder.

Urge ações concretas para prevenir e combater os graves casos de assédio moral no serviço público. Por quê? Porque — viola o princípio fundamental da República, vale dizer, a dignidade humana do servidor, que é irrenunciável, e, após, o direito à ampla defesa, punir o assediador; responsabilizando objetivamente o Estado-Administração. (CF, artigo 37 § 6º).


(*)  é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.


REFERÊNCIAS
[1] MELLO Celso Antônio Bandeira, Discricionariedade e Controle Judicial, 2ª ed. 5ª tiragem, Malheiros, 2001.

[2] SARMENTO, Daniel, Dignidade da Pessoa Humana, 2016, p.14-15, 2ª edição, Fórum.

[3] FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p.54.

[4] HIRIGOYEN, Marie-France, Mal-Estar no Trabalho- Redefinindo o Assédio Moral, p.17, 9ª ed., 2017, Bertran Brasil.

[5] FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p.130.

[6] MARTINS, Sergio Pinto, Assédio Moral no Emprego, Saraiva, 2017, p.31.

[7] CAVALIERI, Sérgio, Programa de Responsabilidade Civil, 5ª ed., 2ª tiragem, 2004. Malheiros.

[8] STRECK, Lenio, https://www.conjur.com.br/2012-abr-12/senso-incomum-tomada-poder-pelos-estagiarios-regime.