Em entrevista ao G1, magistrada, que nasceu no interior do Tocantins, fala sobre história, conquistas e raça.

G1 – DF
PEDRO ALVES
19/12/2019

Maria Ivatônia Barbosa dos Santos tem papel pioneiro. Na última quinta-feira (12), a magistrada se tornou a primeira desembargadora negra nos 59 anos do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF).

Natural de Arraias, cidade com pouco mais de 11,5 mil habitantes, no interior do Tocantins, ela sabe o peso que a conquista carrega. “Ser a primeira mulher negra promovida a desembargadora tem um significado especial: ocupação de espaço a que fazemos jus”, afirma.

No entanto, ela não considera a própria história como um grande exemplo de superação.

“Deve-se ter em mente que ‘superação’ não pode significar exigir dos negros sacrifícios sobre-humanos.”

Após 26 anos de atuação como juíza, Maria Ivatônia afirma que o caminho não foi fácil. “Ser uma das poucas pessoas negras na magistratura do TJDFT significou profundo empenho, atitude de desafio e persistência em face a dificuldades externas e internas.”

Em entrevista ao G1, a desembargadora falou sobre sua história e fez comentários sobre raça, Justiça, conquistas e obstáculos. Confira abaixo:

“Nossa estrutura social é elitizada.”

G1: Para a senhora, existe um significado especial em ser a primeira desembargadora negra do TJDFT?

Maria Ivatônia: Existe, sim, um grande significado. Ser a primeira mulher negra promovida a desembargadora tem um significado especial: ocupação de espaço a que fazemos jus.

G1: Acha que ainda há dificuldade na ascensão de mulheres e pessoas negras a esses cargos? Por que?

Maria Ivatônia: Sim. Há dificuldades estruturais, que impedem ou dificultam o acesso ao ensino formal. E se assim é, impede-se não apenas a ascensão, mas o próprio ingresso nas carreiras jurídicas.

G1: Ao que a senhora credita o fato de ser a primeira desembargadora negra do TJDFT? Como conseguiu superar as barreiras?

Maria Ivatônia: Na origem, está a família estruturada, pai professor e mãe – igualmente amante da boa educação – empenhados em garantir que os filhos tivessem o melhor em termos de educação. Ser uma das poucas pessoas negras na magistratura do TJDFT significou profundo empenho, atitude de desafio e persistência em face a dificuldades externas e internas.

“Tudo pode ser feito; nada há que não possa ser aprendido. Se ninguém fez até hoje, isto só significa que ainda não foi feito, não que não possa ser feito.”

G1: Conte um pouco da sua história pessoal

Maria Ivatônia: Nasci em uma cidade muito pequena: Arraias, então estado de Goiás. Nos primeiros anos, frequentei a escola pública. Não havia instituição particular para os primeiros anos do ensino fundamental.

Pai, professor, diretor de escola. Nas memórias mais antigas, está meu pai saindo para a escola, corrigindo tarefas. Com cinco anos, três irmãos pequenos – mais à frente, nasceriam os outros três irmãos –, todas as amiguinhas indo para a escola, não tive dúvida.

Final de abril, declarei para mim mesma que bastava; peguei um caderno, um lápis, uma borracha e fugi para a escola. Entrei esbaforida na sala de aula, e a professora, Dona Helena Gentil, compreendeu a situação e pude permanecer ali com a complacência dela.

Mês de junho, e minha professora veio até meus pais e disse que eu estava alfabetizada e seria um desperdício não continuar. E aí a razão dos muitos anos em que fui a aluna mais nova do colégio e, dizem muitos, uma das melhores.

Ensino fundamental e médio em Arraias. Depois, Goiânia, como todos fazíamos, e vestibular para Direito na PUC-GO.

“Também fui professora de ensino fundamental.”

Lembro-me de Clarice Lispector, dizendo que, ao lado de ter nascido para escrever, nasceu mesmo foi para amar. E eu quase diria que nasci para salas de aulas, assim como nasci para a judicatura.

G1: Acredita que o Judiciário é um setor elitizado? Como acredita que pode haver melhora nessa situação?

Maria Ivatônia: Nossa estrutura social é elitizada. Isto não é atributo exclusivo do Poder Judiciário. Melhoras no particular significam um trabalho estrutural, de conscientização, de instituição de politicas públicas, de ações afirmativas.

G1: Por que escolheu o Judiciário?

Maria Ivatônia: Escolher o curso de direito foi obra do acaso, culpa de um tribunal do júri poucos dias antes de fazer a opção. Fui muito feliz na escolha, mas isto só descobri durante o curso.

E notei logo que, embora outra profissão não me representasse grandes problemas, a magistratura me falava muito mais alto. Justiça como valor, justiça como meta, justiça como a primeira virtude.

Amor poderia ser tido como a maior das virtudes mas, humanos que somos, temos tendência a amar aquilo e aqueles que nos são mais próximos. Por isto, a Justiça é a virtude a ser incessantemente buscada e efetivada.

G1: Acredita ser um exemplo de superação?

Maria Ivatônia: Talvez não represente exatamente exemplo de superação. Seguramente, outros o são muito mais. No entanto, busco atuar de forma a realizar o profundo ideal de Justiça de que sou imbuída.

G1: Espera que sua conquista inspire outras pessoas?

Maria Ivatônia: Espero sim. A expressão “racismo estrutural”, título do excelente livro do querido Silvio Almeida, deve ser bem compreendida e deve estruturar toda a atuação social no sentido. Recomendo efusivamente a leitura da obra.

“Deve-se ter em mente que ‘superação’ não pode significar exigir dos negros sacrifícios sobre-humanos. Por isto, a importância de reflexão mais profunda sobre o tema.”

G1: A senhora foi delegada e atuou por muito tempo como juíza em vara criminal, como vê a situação do direito penal e da superlotação de presídios no Brasil?

Maria Ivatônia: Com muita preocupação. A superlotação de presídios no Brasil é um gravíssimo problema. O tema é muito amplo e exige ampla abordagem.

Passa pela necessidade tanto de repensar a estrutura social, a política educacional, a certeza da resposta estatal, temas cuja amplitude ultrapassa o âmbito deste diálogo.

G1: Acredita que essa situação atinge principalmente a população negra?

Maria Ivatônia: A criminalização de condutas como vadiagem, mendicância, prática da capoeira, traz uma forte conotação do que se denomina tentativa de “higienização social”, tema igualmente muito amplo e que exige uma reflexão e abordagem igualmente amplas.

“67% da população carcerária – dados cuja fonte é o Departamento Penitenciário (Depen) – é negra. Há algo de muito errado nisto.”

G1: Esta semana, tivemos a eleição de uma Miss Universo negra. Na sua opinião, o que isso representa?

Maria Ivatônia: Eleição de uma miss universo negra pode representar mudança de paradigma em termos de conceito de estética. Isto é muito bom.

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